Photobucket - Video and Image Hosting Palimpnóia Artigos, Resenhas, Ensaios: Heloisa Buarque de Hollanda PALIMPNOIA ARTIGOS RESENHAS ENSAIOS

Heloisa Buarque de Hollanda

Intelectuais x Marginais

Tradicionalmente, nós, intelectuais, sempre fomos os porta-vozes das demandas populares e protagonistas dos movimentos de transformação (em casos mais otimistas, da "revolução") social na área dos projetos artísticos e literários. Hoje, parece que alguma coisa de bastante diferente está no ar e que vamos ter que repensar, com radicalidade, nosso papel como intelectuais tanto no campo social, como no acadêmico e artístico. Falo das propostas inovadoras da cultura hip hop & de tantas outras manifestações artísticas produzidas na periferia das grandes cidades e que estão marcando com força total a produção cultural desse nosso início de século. Vou observar aqui, a título de exemplo, apenas a área mais low key dessa produção que é o caso da literatura.

É também da tradição da série literária brasileira, o engajamento político e o compromisso social do escritor e, portanto, uma atenção significativa aos temas da miséria, da fome, das desigualdades sociais e, ultimamente, da violência urbana.

Com a subida da violência em 1987/88, emblematicamente datada pelos arrastões no Arpoador, o interesse da classe média sobre o assunto começa a se manifestar de maneira mais clara e recorrente. Em 1993, o tema da violência atinge seu ápice, só que agora a mobilização da opinião pública é produzida no sentido inverso, o da violência policial. É deste ano, em julho, o massacre da Candelária, no qual oito crianças entre as 50 que dormiam nas escadarias da Igreja foram mortas a tiros por policiais, seguido, em agosto, ou seja, um mês depois, pelo massacre de Vigário Geral, responsável pela morte de 21 inocentes também pela polícia.

Especialmente essa segunda chacina vai marcar época na nossa cultural social e política. Intelectuais, artistas e representantes da sociedade civil unem-se e começam a articular ações concretas em torno de políticas em defesa da cidadania e dos direitos humanos. É desse momento a criação de organizações como o Viva Rio e a realização de marchas pela paz e contra a violência. Não vou me deter nisso aqui porque não é o caso, mas essas ações e, sobretudo, as articulações entre agentes da classe média e as comunidades das favelas e conjuntos habitacionais marcam o início de um tipo de produção cultural até hoje inéditas no Brasil. São produções destas comunidades que interpelam a cultura mainstream e tornam-se sucesso de público e de crítica. Do ponto de vista da história literária, dois livros escritos por autores de classe média inauguram uma produção que vai se desenvolver de forma autônoma e com grande força. São eles: Zuenir Ventura com Cidade partida, de 1994, que relata de forma originalíssima, entre o documental e o literário, as ações pós-massacre de Vigário Geral e Estação Carandiru de Drauzio Varella, publicado em 1999, sobre as condições subumanas de vida no maior presídio da América Latina.

As características propriamente narrativas desses dois livros são bastante interessantes e sobretudo sintomáticas. Cidade partida traz um narrador cuja posição não pode ser confundida com a típica de um livro de denúncia social, no qual o autor se aproxima de seu objeto e através dele traz à tona uma realidade da qual não se teria notícia se não fosse por sua posição privilegiada. Também não me parece refletir a objetividade necessária e característica do relato jornalístico. Mesmo não sendo um autêntico testemonio, o relato de Zuenir ao longo de toda sua narrativa mantém uma postura ambígua: opinativa e afetiva – no sentido da noção de valor-afeto de Antônio Negri – ao mesmo tempo em que franqueia um espaço de canal aberto para a fala do outro. Zuenir empresta sua voz à comunidade que examina, até mesmo ao traficante Flávio Negão, um fato inédito nas narrativas jornalísticas ou literárias. Pela primeira vez, o asfalto ouve as razões, os gostos e a dor de uma ampla e diversificada gama de habitantes da favela, os "terríveis agentes da violência", iniciando um processo de aproximação entre a favela e o asfalto, sem recorrer a falsas colorações heróicas ou vitimizadas.

Em 1999, Drauzio Varella vai percorrer um caminho parecido com Estação Carandiru. Aqui a escuta médica, de traços confessionais, que implicam no pressuposto da confiança entre quem relata e seu ouvinte, reproduz também de forma não diretamente opinativa o pensamento e o cotidiano do presos em carceragem. Essas são duas obras que, de certa forma, marcam um lugar de relativa abertura da voz da periferia para o mercado das grandes editoras. Ambas tiveram uma ampla recepção de público e consagraram-se como uma forte tendência de mercado.

Entretanto, dois anos antes de Carandiru, em 1997, nosso Mundo das Letras já havia sido surpreendido pela publicação de um obra de ficção que, em pouco tempo, se tornaria um dos maiores best-sellers brasileiros dos últimos tempos. Falo de Cidade de Deus, de Paulo Lins, hoje com 18 edições e traduzido em inúmeros países.

Paulo Lins nos surpreendeu com uma variável totalmente imprevista nos nossos círculos literários: o pobre tem voz e pode até escrever; e mais ainda: escrever um livro de sucesso de público e de crítica. Vou começar pelo começo. Paulo Lins, morador do conjunto habitacional Cidade de Deus, em Jacarepaguá, zona oeste do Rio de Janeiro e local reconhecidamente violento da cidade, formou-se na Faculdade de Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro, trabalhou como professor de ensino médio, quando começou a escrever seus primeiros poemas.

Em certo momento, começa a trabalhar como assistente de pesquisa, fazendo etnografias sobre a comunidade de Cidade de Deus para a professora Alba Zaluar, que realizava um trabalho sobre a violência urbana. Como Paulo mostrava grande dificuldade em organizar a redação de seus relatórios, Alba Zaluar sugere que ele faça uma redação literária de seus resultados de pesquisa. Nascia assim o romance inaugural de Paulo Lins, Cidade de Deus.

Pela primeira vez, e a partir da convivência estreita com as comunidades de periferia, incluindo-se aí bandidos e traficantes, temos uma detalhada anatomia do cotidiano da miséria e do crime no Brasil, agora com as cores da experiência vivida. Já não se trata mais da favela idealizada e separada do asfalto, mas da violência aberta e do inconformismo existentes nos novos conjuntos habitacionais, ou neofavelas, como as identifica o autor..

Com o sucesso definitivo de Cidade de Deus, ficou claro que alguma coisa irreversível havia afetado a criação e o mercado literário. Talvez até um novo cânone (tradição) estivesse em processo de gestação.

Em 2000, surge um novo livro de igual importância, ainda que de repercussão distinta da de Cidade de Deus. Trata-se de Capão pecado de Ferréz (nome de guerra de Reginaldo Ferreira da Silva). Capão pecado traz um tão refinado quanto impactante retrato de Capão Redondo, um dos bairros de maior índice de violência, tráfico de drogas e criminalidade de São Paulo, onde Ferréz cresceu e mora até hoje. Seus mais de 200 mil moradores não contam com redes de esgoto, nem hospitais, nem assistência de nenhuma espécie. Capão registra a marca sangrenta de 86.39 assassinatos a cada grupo de 100.000 habitantes, muito maior que a média nacional, que já é estratosférica para os padrões europeus.

Este livro mostra uma integração bem maior com o universo hip hop do que seu antecessor, Cidade de Deus. Mesmo que não contasse com uma estrutura rítmica e musical organizada, como a que encontram os rappers, Ferréz tomou como referência as letras dos raps, com seu misto de crônica do gueto e convocação dos manos para a ação. Pelo menos, um ponto de partida diverso do cânone letrado. No livro, temos a presença de Mano Brown (líder do grupo de rap Racionais MCs, também residente de Capão Redondo) que comanda as epígrafes de cada capítulo do livro. Os dois juntos tornaram-se, daí em diante, grandes líderes comunitários e forte referência para jovens sem perspectiva.

O segundo livro de Ferréz, Manual prático do ódio, mais agressivo do que o primeiro, descreve o impasse de uma geração que "não mede conseqüências para buscar o que não teve" (sic). Uma geração marcada pelas seqüelas deixadas pelo Estado e pela intensidade do impacto da mídia.

O que surpreende nos livros de Ferréz é, sobretudo, a inversão do lugar da violência. Em vez de ser tema da narrativa, a violência é apenas o entorno, a condição de vida de personagens comuns que, como nós, têm emoções, prezam a família, amam, têm ciúmes, fazem sexo e sonham com um futuro mais tranqüilo. Isso é um choque para o leitor que não vive nos cenários do crime, e termina promovendo uma forma de identificação ou, pelo menos, entendimento, do personagem agressor, ainda não conhecida na nossa literatura.

Em Ferréz, torna-se mais clara uma característica já presente em Cidade de Deus. O autor é narrativamente comprometido com o local de sua fala, que se torna porosa e, portanto, excessivamente receptiva da dicção local. Como se o autor dividisse a autoria da obra com o território da ação. Muitas vezes temos a sensação de que Capão Redondo fala através do autor de seu relato. É um caso bem novo e interessante de autoria que, por se querer hiperlocalizada, traz em sua construção uma das estratégias mais usadas pelas culturas locais em tempos de globalização. O verbo glocalize já entrou para o léxico do mercado cultural destes últimos anos. É importante ainda observar que o eu-coletivo sempre foi uma alternativa eficaz de empoderamento das dicções literárias das minorias de gênero e etnia. Mas não penso ser este o caso de Paulo Lins ou de Ferréz. Mesmo que tragam consigo esta tradição narrativa, no caso dos dois autores claramente a opção é mais para a marcação do local como espaço territorial do que como voz coletiva, como é o caso da literatura de mulheres ou negros.

Com o sucesso, Ferréz recebeu convite de bolsa para estudar literatura numa universidade americana. Não vai. Esta recusa se estende para a oferta de um produtor norte-americano que tenta comprar os direitos de Capão pecado para o cinema. Ferréz, em entrevista para os jornais, esclarece: "Escrevo para ser lido pela minha comunidade. Meu lugar é aqui. Minha guerra é essa".

Comprometido com sua comunidade, Ferréz cria, ainda com Mano Brown, o movimento 1 DASUL, uma usina cultural que, entre outras atividades, tem um selo musical próprio e uma grife de moda chamada Irmandade (um conceito fundamental da cultura hip hop) que hoje já ocupa um galpão de 200 metros e outras duas oficinas apenas de costureiras, produzindo uma média de 300 peças por dia. A grife, que se caracteriza por ilustrações que denunciam o sistema, tem uma loja no centro de São Paulo, sua produção é distribuída para sete estados brasileiros, além de deter os direitos de distribuição das marcas de seis grupos de rap. A grife Irmandade confecciona também cartilhas mensais para um programa contra drogas e pretende abrir uma clínica para tratamento de dependentes. No embalo, Ferréz organizou dois números especiais da revista Caros Amigos, chamados "Literatura Marginal", que reúnem e divulgam escritores da periferia, abrindo espaço para nos talentos locais. E organizou este ano a antologia Literatura marginal: talentos da escrita periférica, para a Agir.

Por marginal, Ferréz entende a busca de um lugar na série literária para aqueles que vem da margem. E explica melhor: literatura marginal é aquela feita por marginais mesmo, até pelo cara que já roubou, aqueles que derivam de partes da sociedade que não têm espaço. Mas adverte: "Quando a gente consegue alguma coisa por meio da arte, não quer dizer que vamos sossegar. Temos é que organizar o nosso ódio, direcioná-lo para quem está nos prejudicando. Tudo o que o sistema não dá, temos que tomar". Participando, em 2004, de uma mesa no Seminário Cultura e Desenvolvimento, Ferréz, indignado, disse: "Ainda que eu escreva prioritariamente para minha comunidade, não quero minha literatura no gueto. Quero entrar para o cânone, para a história da literatura, como qualquer um dos escritores novos contemporâneos. E não acho também que minha comunidade deve se limitar à minha literatura, ela tem o direto de ter acesso a Flaubert. Foi a isso que chamei anteriormente de 'democratização de expectativas' para a qual talvez nós, intelectuais e artistas de classe média, ainda não estejamos preparados. Na nossa fantasia perversa aceitamos que o pobre sonhe com um Nike, mas não com Flaubert".

O último livro que vou comentar rapidamente é Cabeça de porco, lançado este ano, com a autoria de Luiz Eduardo Soares, Celso Athayde e MV Bill. Um sociólogo, uma liderança comunitária, presidente da CUFA (Central Única de Favelas), e um rapper politicamente engajado. Bill e Celso Athayde estavam já há algum tempo, fazendo uma pesquisa, com gravações em vídeo, sobre as causas da violência e adesão ao tráfico de drogas entre jovens das favelas e uniram-se a Luiz Eduardo Soares que, além de sociólogo, já tinha sido secretário de Segurança no governo Garotinho e secretário-geral de Segurança Pública no governo Lula, portanto com experiência e informações bastante concretas na área da criminalidade. Os três propuseram então escrever um livro a seis mãos.

É verdade que as partes escritas por cada um são assinadas, não produzindo, portanto um tipo de autoria coletiva, mas colaborativa. O livro não desafina na passagem de um autor para outro, que aparecem intercalados na estrutura narrativa do livro. Um caso de saber compartilhado com igual peso para cada uma das partes, cada autor oferecendo sua dicção e sua competência específicas em pé de igualdade, em que a autoria é menos importante do que o conjunto polifônico do trabalho, que é precisamente de onde esta obra tira sua maior força e valor.

A leitura de Cabeça de porco – cujo sentido na favela é o de uma situação da qual você se percebe "sem saída" – é uma leitura de um só fôlego. Sem piedade, e levado por um texto profundamente afetivo, o leitor é mergulhado num universo de violência e miséria cuja experiência emocional é totalmente desconhecida das classes média e alta. É interessante lembrar da reação da platéia essencialmente elitizada da última Flip (Festa Literária de Parati) à apresentação deste livro com as presenças de Luiz Eduardo e MV Bill. Palmas ininterruptas, assobios, gemidos. Que reação teria sido essa? De uma "revelação quase religiosa"? De encantamento com pop stars? Ou o quê? Neste caso, ao invés de querer escolher uma dessas respostas à minha pergunta, prefiro ficar com o grau de intensidade e não-ortodoxia dessa manifestação e de sua recepção pelo público. Escolhi comentar esses três livros muito diferentes entre si para pensar um pouco o papel do intelectual contemporâneo.

Antes disso, me permito um exemplo pessoal, bastante recente, e que demonstra minha falta de jogo de cintura para lidar com esses fenômenos: Há dois meses, coordenei, por intermédio de meu Programa na UFRJ, uma exposição no Centro Cultural dos Correios chamada Estética da Periferia. Essa exposição foi montada por Gringo Cárdia, que tem dois projetos exemplares: O Kabum e a Fábrica de Espetáculos, que são laboratórios superequipados com tecnologia de ponta e formam marceneiros de teatro, iluminadores, cenógrafos, figurinistas, videomakers, fotógrafos e designers.

O objetivo desses laboratórios é a formação e a qualificação profissional de adolescentes e jovens das comunidades de baixa renda. A idéia da exposição foi a de que esses jovens escolheriam as peças da exposição, portanto tinham um poder curatorial, e serviriam como assistentes do Gringo na idealização e produção da montagem cenográfica do evento. Bem, confesso que eu, uma típica intelectual dos anos 60, com todos os ônus que isso representa, fiquei altamente incomodada e surpresa com o resultado. O que eu vi foi uma exposição que passava longe do que eu considero cultura ou a estética da periferia. Era tudo muito colorido, meio fashion, claramente estetizado. Para uma contemporânea do Cinema Novo isso soou desconfortável. Mas todas as sextas-feiras fizemos uma visita, não diria guiada, mas meio em forma de painel de discussões com diferentes segmentos da periferia. Surpresa. Todos se reconheciam e aplaudiam o resultado, alegando que esta era a primeira mostra na qual se respeitava a auto-estima da periferia. Que trazia o lado positivo desta cultura e espelhava o que há de melhor nas favelas e nos conjuntos habitacionais. Ouvindo isso, tive certeza de que estamos vivendo um momento bastante especial de acesso real e inédito aos sentimentos, ethos e demandas das classes de alto nível de pobreza. Percebi também como é precário nosso poder de tradução cultural entre classes e etnias.

Apesar da insegurança e (por que não?) o medo que esse novo momento me traz, tenho a forte impressão de que afinal o intelectual, apesar de todas as indicações em contrário, pode não estar necessariamente desempregado nesse século XXI. Mas alguns cuidados ele certamente vai ter que assumir para garantir sua sobrevivência com algum sentido e positividade daqui para frente. Antes de mais nada, como nos sugeriu Beatriz Sarlo nessa última Flip, é inadiável uma bela e urgente auto-crítica. E em seguida, testar novas formas de participação e engajamento. Quem sabe a sugestão de que a periferia e os movimentos que defendem a interpelação da propriedade intelectual fechada e superprotegida no modelo norte-americano, com seu corolário necessário, o investimento na noção de saber compartilhado, possa afinal dissolver velhas equações corporativas em novas maneiras de fazer política.

Heloisa Buarque de Hollanda (hollanda@centroin.com.br) é professora titular de Teoria Crítica da Cultura da Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e coordenadora do Programa Avançado de Cultura Contemporânea (PACC/UFRJ).
Fonte: Portal Literal
11/10/2005



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